sexta-feira, 29 de outubro de 2010


 Amanheceu chovendo ausências. A água sobe como espuma entre as paredes descascadas. Ondulam os móveis, os quadros e as lâmpadas. Chega à altura do meu rosto. As águas são escuras e turvas, e estão infestadas de insetos e serpentes, cujos olhos científicos se avolumam  num misto de exclusão e assistência, antes chegar às conclusões que anunciam. Retratos diluídos desancoram olhos transbordantes de carências. Eram seu rosto e seu sorriso que eu via. Quão lindos, sobre as águas, seus pés se alinham. Imersos num alicerce de safiras. Volta, quis dizer, os borbulhos da água, cobrindo-me o rosto e silenciando minhas lágrimas. Arracandas de uma rocha, águas que não passarão mais por esta rua. Seco os olhos úmidos de desesperança. Estão abertos, não se fecham. Aqui dentro tudo submerge. Menos as lembranças.  ( Pipa)







''Peço que abaixe a voz ego, que o meu verdadeiro eu está presente. Vão me contar o que está havendo? - perguntei. Uma parte de mim suspirou e sentou-se na cadeira. A outra, intolerante, lançou-me um olhar recriminador, como se tivesse descoberto um terrível segredo sobre mim. O ponteiro do relógio estava numa encruzilhada e, ainda indeciso, fez opção pela meia noite. Quando pensei que finalmente chegariam a um propósito para abrandarem meu destino diante das minhas causas perdidas, as duas partes de mim se envolveram num duelo final de tragédia litúrgica sem limites.Começo a pensar que a humanidade veio do ''cachorro''. Late o tempo todo. Fui derrubada em meio a uma briga, e mesmo tendo respeitado as nádegas alheias não me imunizaram. Me conforta saber que valho ao menos uma surra. Senti um certo alívio de saber que a emoção sempre arranja um rodapé para constar que não somos feitos só de razão. É o que eu digo. Se gastássemos mais tempo lapidando nossas próprias motivações, economizaríamos na expedição de autos safirentos de insegurança, que não cumprem outra finalidade, exceto a de depor contra a nossa própria condição. A discussão foi boa, mas, as duas metades de mim, não tendo achado um ponto de equilíbrio, ficaram descobertas. E eu, indecisa, fui checar se minha voz estava com todas as cordas, temendo ficar afônica de tanto apaziguar os meus ânimos sobressaltados. As maiores lutas acontecem dentro de nós mesmos. E quando se fala em batalhas de ego, me questiono se há vencedores ali. Algumas tentativas não passam de meros esperneios, para que possamos obter o consentimento da consciência e obrigá-la a aceitar nossas imperfeições - é a base da psicologia infantil. Não alcançamos a maturidade. E, no entanto, como não aceitamos nossas próprias limitações, tudo se perde, até o respeito. É uma triste constatação: mas como ver o outro a partir dele mesmo se não há outra imagem no espelho que não a nossa? Todos nós temos zonas obscuras de nossa personalidade que não podem ser penetradas. Essa sensação de incompletude que carregamos é extremamente perigosa. Falta-nos discernimento para compreender que não cabe ao outro a tarefa de completar aquilo que nos falta. Ninguém pode ser compelido a viver de acordo com nossas expectativas. Há que se ter cuidado para não cair nas armadilhas do superficialismo. O ego é o assombro da personalidade. Geralmente ele anda por aí com um sorriso oleoso para que não percebamos o quanto transborda de gozo quando consegue sufocar nossa essência. Que eu seja forte o bastante para admitir que diante de mim eu permaneço fraca. Que eu tenha coragem o bastante para me livrar de todos os excessos até minha dor de existir se esvaziar. Procuro desesperadamente por mim. E não vou parar até que eu me encontre.''
 
Pipa