Amanheceu chovendo, dessa vez não foram ausências. Antes de a luz despontar, a chuva que cai do telhado e explode na poça d’água vem acordando quem insiste em dormir. Por que tão cedo? Por que a chuva resolve gritar antes de mim?Por que daquela forma? Por que o grito da chuva? Por que o céu me olhava com seus olhos negros de desdenho?Fazia um tempo que os dias não amanheciam frios daquele jeito. O dia começa e eu me visto e olho no espelho sujo do banheiro uma imagem turva que eu custo em conhecer até lavar o rosto. Mal acordei e ainda ouço a chuva fina como um choro. Abro a janela emperrada do meu quarto e sinto uma leve brisa batendo nos meus cabelos desalinhados, sinto que meu doce amigo imaginário havia voltado só que dessa vez com uma simplicidade que eu não havia percebido. Sentia que ele buscava os risos presos nos cantos da minha boca. Então naquele dia aparentemente feio abri a boca e sorri macio, fechei os meus olhos feito um passarinho e ele levantou comigo venerando momentaneamente o grito da chuva. Despertei com as trovoadas das tempestades existentes da minha mente, mas me deixei envolver em sua companhia- brisa para que eu fosse levada aonde meus pensamentos utópicos pudessem transitar em liberdade. Os pensamentos puseram a se movimentar por conta própria percebi que o coração do meu amigo imaginário batia rapidamente, o sangue quente fervia nas veias e o coração caminhava por caminhos fora do seu corpo. Pulsava secretamente também no meu corpo (mesmo eu não sabendo disso).Era um pulsar mútuo.Um pulsar milimétrico.
Olhávamos fixadamente para os passarinhos que passavam na nossa frente e me ensinara que eles só precisavam bater as asas uma vez e deixar que o vento os carregue sem muitos esforços. Meditávamos sobre nossa relação crescente de significado. Brincávamos sob uma colcha que esquentava o frio enquanto riamos das coisas vãs. Eram dias entrelinhados, bordados com pureza e sincronia. Eram dias que conversávamos o quanto eu gostava de ser a flor mais linda do seu jardim e o quanto eu pensava naqueles olhos de oceano que sacudiam todas as minhas fibras emocionais. Era um jardineiro com cheiro de Deus que me fazia florescer. O choro fino da chuva não me incomoda mais, o meu tempo foi aberto por uma simples companhia e o meu pranto se tornou em um samba dentro dos meus olhos. Eram dias bem passados, em que a tempestade e o tempo negro não importavam mais. Tardes em que o meu doce amigo imaginário me fazia cantar mesmo com a minha voz desafinada. Noites em que balávamos no ritmo mais perfeito. Quando eu não o sentia perto o suficiente era os dias que mais choviam dentro de mim e sempre me colocava a pensar na vida suicida que levava, e como me sentia mórbida demais ou um lobo da estepe.Esquiava na neve petrificada dos meus pensamentos mais ele sempre esteve dentro de cada pedaço de mim. Nossas tardes eram crepusculares e às vezes com uns céus azuis cor de sossego. Seus olhares de relance me anestesiavam. Tornara-se para mim como alguém que inspira o amor. Costumávamos brincar nos salões do céu, fazendo bagunça com os anjos. Ele costumava me ensinar e a impressionar os jurados como se dança calmamente em um salão-mundo ardendo em chamas. Saiamos para ver o sol ir para casa e a lua beijar o mar. Mesmo quando os dias eram muito agitados ele já me esperava com o seu carinho de veludo, mesmo com suas mãos feridas ele conseguiu escrever uma carta de amor no meu coração. Era alguém que transformava o relógio em uma bandeira branca invisível. Era um amigo que fitava a minha ‘’monos silabes’’ e mesmo assim aceitava isso , sem exigências. Era alguém tão simbólico, ia além das minhas tramas verbais. Escolhia as coisas por mim,beijava as minhas expressões de preocupaçãoes e adoçava todos os meus sentidos, me fazendo sujar as minhas vestes de poesia e prazer de viver.
Era tão utópico que se tornara real, me sentia como se fossemos um. Diziam-me que eu nunca poderia humanizá-lo tanto quanto fazia, pensavam que fosse um ser muito intocável longe de ser real ,mas para mim era o meu lugar de repouso onde eu inexistia no tempo querendo o meu céu azul cor de sossego limpo e claro para que olhemos para ele ou ele se vire e chova em nós.
Talvez essa seja a razão de toda vez que nos encontramos meu coração bata como se mil cavalos corressem dentro dele.
Agora sinto meu pensamento ecoar dentro do meu corpo como tambores anunciando a sua chegada, fazendo sentir o seu discreto bater de asas de anjo e assim acreditando que acima da minha imaginação utópica ele existe e me faz inexistir no tempo que passamos juntos.(Michelle Souza de Jesus)
Inverno de 2011.